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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Exposição: MaDu: Bi(bli)ografias


(Para essa exposição não houve um texto curatorial, simplesmente porque não cabia. Para cada obra ou série, entretanto, foi relacionado um texto literário que se vê abaixo).



Tudo (em mim) é quebrado, anónimo e impertencente.
Tudo ali é quebrado, anónimo e impertencente. Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz — quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre os humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.
Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo da plebe infernal, avarento de sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, e morriam molemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de lacraus de cuspo.
O mais extraordinário de toda essa gente era a nenhuma importância, em nenhum sentido, de toda ela. Uns eram redactores dos principais jornais, e conseguiam não existir; outros tinham lugares públicos em vista no anuário e conseguiam não figurar em nada da vida; outros eram poetas até consagrados, mas uma mesma poeira de cinza lhes tornava lívidas as faces parvas, e tudo era um túmulo de embalsamados hirtos, postos com a mão nas costas em posturas de vidas.
Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da esperteza mental uma recordação de bons momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física e a memória de algumas anedotas com espírito.
Neles se intercalavam, como espaços, uns homens de mais idade, alguns com ditos de espírito pregresso, que diziam mal como os outros e das mesmas pessoas.
Nunca senti tanta simpatia pelos inferiores da glória pública como quando os vi malsinar por estes inferiores sem querer essa pobre glória. Reconheci a razão do triunfo porque os párias do Grande triunfavam em relação a estes, e não em relação à humanidade.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1982.  - 70.


Com o desmoronamento de minha civilização e de minha humanidade eu passava orgiacamente a sentir (o gosto da identidade das coisas).

O neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um neutro vivo. E eu estava toda nova como uma recém-iniciada. Era como se antes eu estivesse estado com o paladar viciado por sal e açúcar, e com a alma viciada por alegrias e dores – e nunca tivesse sentido o gosto primeiro. E agora sentia o gosto do nada. Velozmente eu me desviciava, e o gosto era novo como o do leite materno que só tem gosto para boca de criança. Com o desmoronamento de minha civilização e de minha humanidade – o que me era um sofrimento de grande saudade – com a perda da minha humanidade, eu passava orgiacamente a sentir o gosto da identidade das coisas.

A paixão segundo G. H. Clarisse Lispector. São Paulo: Rocco, 1998. 66-67


Não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida e tenho medo de que neste núcleo eu não saiba mais o que é esperança
E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora. Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim ara uma verdade – meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse annao querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram.
- Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua. Não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida – e, através da barata que mesmo agora revejo, através dessa amostra de clamo horror vivo,  tenho medo de que neste núcleo eu não saiba mais o que é esperança.

A paixão segundo G. H. Clarisse Lispector. São Paulo: Rocco, 1998. P. 40

Meu corpo em pedaços e desgastado

Hoje, porém o tempo (que já não tem serventia para mim) está se esgotando. Logo farei trinta e um anos. Talvez. Se meu corpo em pedaços e desgastado permitir. Mas não tenho nenhuma esperança de salvar minha vida nem de dispor de mil e uma noites. Preciso trabalhar depressa, mais depressa do que Sherazade, se é que pretendo acabar contando alguma coisa que faça sentido – isso mesmo, sentido. Admito: acima de tudo, tenho medo do absurdo.

Filhos da Meia Noite. Salman Rushdie. São Paulo: Editora Companhia das Letras. P. 20

Da desnecessidade de ser mulher

Um edifício cinzento e cachapado, de trinta e quatro andares apenas. Acima da entrada principal, as palavras CENTRO DE INCUBAÇÃO E CONDICIONAMENTO DE LONDRES CONTRAL e, num escudo, o lema do Estado Mundial: Comunidade, Identidade, estabilidade.

Admirável Mundo Novo. Aldous Huxley. Rio de Janeiro: Globo Livros, 1981. P. 33

Da inabilidade de ser mulher
Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É o que me faz viver
Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera
Ser o verão no apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um Deus o curso da história
Por causa da mulher

Super-Homem, a Canção. Gilberto Gil



Da impossibilidade de ser mulher
 GOZO INSATISFEITO   
Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento
De minha mocidade, experimento
O mais profundo e abalador atrito...
Queimam-me o peito cáusticos de fogo
Esta ânsia de absoluto desafogo
Abrange todo o círculo infinito.

Na insaciedade desse gozo falho
Busco no desespero do trabalho,
Sem um domingo ao menos de repouso,
Fazer parar a máquina do instinto,
Mas, quanto mais me desespero, sinto
A insaciabilidade desse gozo!

EU. Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1971. P. 289

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Exposição: Cláudio Manculi: Movimentos da Caixa Preta




Hoje em dia, todo mundo tem uma câmera e o Instagram instalado no telefone. Mas o que é - e o que pode - efetivamente uma fotografia?

A idéia de que a imagem representa/ registra o mundo é muito mais velha que a própria fotografia: a humanidade já fazia isso nas paredes da caverna... Para piorar, a imagem técnica emancipa a sociedade de pensar conceitualmente (já que a representação é idêntica à coisa representada, não há conceito, abstração ou ressignificação). Assim, todo o dia, quando fotografamos inadvertidamente com os nossos celulares, não estamos criando nem pensando. E por mais tecnológico e de última geração que seja a nossa câmera, não fazemos mais do que os homens das cavernas. Estamos, às vezes, fazendo até menos, jogando um jogo exatamente como ele foi proposto. É o exibir-se vazio e contemporâneo, típico das redes sociais, contaminando o olhar.

Mesmo quando o fotógrafo, agora com esse nome, preocupa-se tecnicamente com o resultado e sabe manipular e programar a sua máquina fora do "manual", nem sempre ele age autonomamente. E, muitas vezes sem perceber, passa simplesmente a repetir a imagem existente no mundo, sem conceitos, sem pensar. Sim, para a autonomia da imagem o próprio fotógrafo deve atingir uma emancipação cultural de modo a ir além das intenções pré- determinadas dos objetos, também lançando luz sobre a descoberta de novas visões através de um ato conceitual. É isso o que diz Vilém Flusser, filósofo da fotografia que inspira o Cláudio e cujo livro dá nome a essa exposição.

Nas fotos aqui expostas, distorcidas, desfocadas, rabiscadas, duplicadas, é a vitória do Cláudio sobre o aparelho, seja ele a máquina digital mais bambambam ou seja a que ele mesmo fez, com caixas de fósforo e filme. Muito embora, a primeira vista possa parecer o contrário. Não se tratou aqui, em momento algum, de acaso cego e as fotografias aqui expostas, em última instância, são, na verdade, resultado de uma produção consciente na discussão da própria fotografia e na problematização dos seus elementos-chave dentro da produção fotográfica, tal qual Flusser almejou.

* * *


Fotos aqui

A produção da noite contou com Leonardo Muniz, Matteo Papaiz e Igor Pimenta fazendo um Tributo ao Ornette Coleman.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Exposição: Felipe Cidade: Transgressões



Transgressão significa a ação humana de atravessar, exceder, ultrapassar, noções que pressupõem a existência de uma norma que estabelece e demarca limites. Seu significado transitou da esfera geografica, na qual fixava o limite para as águas do mar à concepção ético-filosófica, que abriga desde preceitos morais e religiosos até as leis do Estado. Daí, as contraposições entre bem e mal, mandamento e pecado, código e infração.
Nas ações criativas humanas, transgressor e transgredido tendem a confundir-se. Por essa razão, o ato criador não se processa em série, como numa linha de montagem predeterminada. O criador/transgressor é o agente solitário que opera a superação de si mesmo na ruptura com o mundo que o cerca. Cada um, ao buscar, ao inventar, ao tentar o ainda-não-ousado, o novo, incorre em transgressão, não como subversão da ordem, mas como implementação, como criação. (Wikipedia)

Arte é só o que é festivo, alegre e colorido ou arte é só o revolucionário e o iconoclástico? Reapresentar o que já foi feito é original? Qual o limite da referencia? E o da cópia? A arte precisa ser original? Transgressão como desrespeito a leis não é reacionário?  E ser reacionário não é conflitante com ser transgressor?



Entendo que, nada mais amigável do que o copo de cerveja e essa mesinha de Madeira, os sofás do Kabul, para permitir que sentemos e o papo vire: que cazzo é isso que vemos aqui?

A exposição do Felipe é, dentro desse propósito de trazer a arte contemporânea para o bar, a porção de batatinha fritas que trago para vcs hj. Escolham o sabor!

domingo, 1 de abril de 2012

Arte contemporânea Wabi Sabi


RESUMO: Investigação e definição dos conceitos da estética Wabi Sabi como discurso artístico que realça o natural, o imperfeito, o assimétrico e o desgastado, sem, entretanto, abandonar a busca por uma indiscutível beleza, que reflita a tranquilidade. Verificação de que o Wabi Sabi tem grande influência na contemporaneidade, donde o belo contemporâneo está muito mais relacionado ao prazer intelectual causado pelo entendimento cognitivo ou sensorial da obra a que se contempla. Levantamento dos artistas contemporâneos japoneses que realizam obras hoje que podem ser entendidas como Wabi Sabi e conclusão de que o Japão é produtor de uma arte global não datada e regionalizada, e também importante contribuinte da formação desse novo modelo global de pensamento artístico. 

Palavras Chave: Estética. Wabi Sabi. Arte Japonesa. Arte Contemporânea. 



O artigo foi publicado na Revista Belas Artes, Ano 4, n.8, jan-abr 2012
ISSN 2176-6479. E as fotos das obras mencionadas estão no anexo.