(Para essa exposição não houve um texto curatorial, simplesmente porque não cabia. Para cada obra ou série, entretanto, foi relacionado um texto literário que se vê abaixo).
Tudo (em mim) é
quebrado, anónimo e impertencente.
Tudo
ali é quebrado, anónimo e impertencente. Vi ali grandes movimentos de ternura,
que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses
movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz
— quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos na analogia de
qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e,
outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação
sistematizada entre os humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos
os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.
Essas
criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo da plebe infernal, avarento de
sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, e
morriam molemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de lacraus de
cuspo.
O mais
extraordinário de toda essa gente era a nenhuma importância, em nenhum sentido,
de toda ela. Uns eram redactores dos principais jornais, e conseguiam não
existir; outros tinham lugares públicos em vista no anuário e conseguiam não
figurar em nada da vida; outros eram poetas até consagrados, mas uma mesma
poeira de cinza lhes tornava lívidas as faces parvas, e tudo era um túmulo de
embalsamados hirtos, postos com a mão nas costas em posturas de vidas.
Guardo
do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da esperteza mental uma recordação
de bons momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de
alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serventes do acaso,
e, em resumo, um tédio de náusea física e a memória de algumas anedotas com
espírito.
Neles
se intercalavam, como espaços, uns homens de mais idade, alguns com ditos de espírito
pregresso, que diziam mal como os outros e das mesmas pessoas.
Nunca
senti tanta simpatia pelos inferiores da glória pública como quando os vi
malsinar por estes inferiores sem querer essa pobre glória. Reconheci a razão
do triunfo porque os párias do Grande triunfavam em relação a estes, e não em
relação à humanidade.
Livro do Desassossego por
Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa.
Lisboa: Ática, 1982. - 70.
Com o desmoronamento
de minha civilização e de minha humanidade eu passava orgiacamente a sentir (o
gosto da identidade das coisas).
O
neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o
sêmen e a proteína são de um neutro vivo. E eu estava toda nova como uma
recém-iniciada. Era como se antes eu estivesse estado com o paladar viciado por
sal e açúcar, e com a alma viciada por alegrias e dores – e nunca tivesse
sentido o gosto primeiro. E agora sentia o gosto do nada. Velozmente eu me
desviciava, e o gosto era novo como o do leite materno que só tem gosto para
boca de criança. Com o desmoronamento de minha civilização e de minha
humanidade – o que me era um sofrimento de grande saudade – com a perda da
minha humanidade, eu passava orgiacamente a sentir o gosto da identidade das
coisas.
A paixão segundo G. H.
Clarisse Lispector. São Paulo: Rocco, 1998. 66-67
Não me deixes ver
porque estou perto de ver o núcleo da vida e tenho medo de que neste núcleo eu
não saiba mais o que é esperança
E na
minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no
deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico
monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura
promissora. Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim
ara uma verdade – meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse annao querer,
uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus
primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram.
- Segura
a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais
primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua. Não me deixes
ver porque estou perto de ver o núcleo da vida – e, através da barata que mesmo
agora revejo, através dessa amostra de clamo horror vivo, tenho medo de que neste núcleo eu não saiba
mais o que é esperança.
A paixão segundo G. H.
Clarisse Lispector. São Paulo: Rocco, 1998. P. 40
Meu corpo em pedaços e
desgastado
Hoje,
porém o tempo (que já não tem serventia para mim) está se esgotando. Logo farei
trinta e um anos. Talvez. Se meu corpo em pedaços e desgastado permitir. Mas
não tenho nenhuma esperança de salvar minha vida nem de dispor de mil e uma
noites. Preciso trabalhar depressa, mais depressa do que Sherazade, se é que
pretendo acabar contando alguma coisa que faça sentido – isso mesmo, sentido.
Admito: acima de tudo, tenho medo do absurdo.
Filhos da Meia Noite. Salman
Rushdie. São Paulo: Editora Companhia das Letras. P. 20
Da desnecessidade de
ser mulher
Um
edifício cinzento e cachapado, de trinta e quatro andares apenas. Acima da
entrada principal, as palavras CENTRO DE INCUBAÇÃO E CONDICIONAMENTO DE LONDRES
CONTRAL e, num escudo, o lema do Estado Mundial: Comunidade, Identidade,
estabilidade.
Admirável Mundo Novo. Aldous
Huxley. Rio de Janeiro: Globo Livros, 1981. P. 33
Da inabilidade de ser
mulher
Um dia
vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o
mundo masculino tudo me daria
Do que
eu quisesse ter
Que
nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a
porção melhor que trago em mim agora
É o que
me faz viver
Quem
dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera
Ser o
verão no apogeu da primavera
E só
por ela ser
Quem
sabe o super-homem venha nos restituir a glória
Mudando
como um Deus o curso da história
Por
causa da mulher
Da impossibilidade de
ser mulher
GOZO
INSATISFEITO
Entre o
gozo que aspiro, e o sofrimento
De
minha mocidade, experimento
O mais
profundo e abalador atrito...
Queimam-me
o peito cáusticos de fogo
Esta
ânsia de absoluto desafogo
Abrange
todo o círculo infinito.
Na
insaciedade desse gozo falho
Busco
no desespero do trabalho,
Sem um
domingo ao menos de repouso,
Fazer
parar a máquina do instinto,
Mas,
quanto mais me desespero, sinto
A
insaciabilidade desse gozo!
EU. Augusto dos Anjos.
Rio de Janeiro: Livraria São José, 1971. P. 289
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